A Relação do Bhagavad Gita com o Conflito Interno da Psique Humana e a Amizade entre Deus e o Homem
- Micael Faccio
- 6 de mai.
- 5 min de leitura

A Bhagavad Gita, um dos textos sagrados mais importantes do hinduísmo, é um diálogo entre o príncipe Arjuna e Krishna, uma encarnação divina de Vishnu, que assume o papel de seu amigo, guia e mestre espiritual. Situada no campo de batalha de Kurukshetra, a narrativa explora profundamente o conflito interno da psique humana, especialmente em momentos de dúvida, medo e dilemas morais, enquanto destaca a relação íntima e amigável entre Deus (Krishna) e o homem (Arjuna).
O Conflito Interno da Psique Humana
Arjuna enfrenta um profundo dilema moral e emocional ao se preparar para lutar contra seus próprios parentes, amigos e mestres na guerra de Kurukshetra. Esse conflito reflete questões universais da psique humana, como:
Conflito entre dever e emoção: Arjuna deve cumprir seu dever como guerreiro (dharma), mas sente compaixão e culpa ao enfrentar entes queridos.
Medo do fracasso e das consequências: Ele teme as repercussões kármicas de suas ações e questiona o propósito da guerra.
Busca por sentido: Arjuna procura entender o significado de suas ações em um contexto maior, refletindo a luta humana para encontrar propósito em meio ao sofrimento.
Esse conflito interno é uma metáfora para as batalhas psicológicas que todos enfrentam: escolhas difíceis, a tensão entre egoísmo e altruísmo, e a busca por equilíbrio em meio a desejos, medos e responsabilidades.
A Amizade entre Deus e o Homem
Krishna, como amigo e cocheiro de Arjuna, personifica uma relação única entre o divino e o humano. Ele não é apenas um deus distante, mas um guia compassivo que se aproxima de Arjuna com empatia, paciência e sabedoria. Essa relação de amizade é central para entender como a Gita aborda o conflito interno.
Krishna não impõe sua divindade de forma autoritária. Ele ouve as dúvidas de Arjuna com proximidade e confiança, e responde com clareza e oferece conselhos práticos, criando um espaço seguro para que Arjuna expresse suas fraquezas. Essa relação reflete a ideia de que Deus, no hinduísmo, pode ser um amigo íntimo (sakha), alguém que caminha ao lado do ser humano em sua jornada.
Com orientação para a autorrealização Krishna guia Arjuna para superar seu conflito interno por meio de ensinamentos sobre o dharma (dever), yoga (disciplinas espirituais) e a natureza da alma (atman). Ele ensina que a verdadeira batalha é interna, contra a ignorância, o apego e o ego. A amizade de Krishna simboliza a presença divina que ajuda o homem a navegar pela complexidade de sua psique.
A relação entre Krishna e Arjuna é permeada por bhakti, a devoção amorosa. Krishna revela sua forma cósmica (Vishvarupa) a Arjuna, mostrando sua divindade suprema, mas retorna à forma de amigo, enfatizando que o divino está acessível ao homem através do amor e da confiança. Essa conexão ajuda Arjuna a superar seu desespero, encontrando força na entrega a Krishna.
A Gita também apresenta quatro níveis de relação entre o homem e o divino, que ajudam a compreender como diferentes tipos de devotos se conectam com Deus.
Os Quatro Níveis de Relação entre o Homem e Deus
A Bhagavad Gita, descreve quatro tipos de devotos que se conectam com o divino, cada um representando um nível diferente de relação entre o homem e Deus.
1. Árta (o aflito): São aqueles que buscam Deus em momentos de sofrimento ou necessidade, como em crises pessoais, doenças ou perdas. Eles se voltam para o divino em busca de alívio, mas sua relação é motivada por circunstâncias temporais.
2. Jijñāsu (o buscador do conhecimento): Esses devotos desejam compreender a verdade espiritual, a natureza da alma e do universo. Sua busca por sabedoria os leva a uma conexão mais profunda com o divino, indo além das necessidades materiais.
3. Arthārthī (o buscador de prosperidade): São aqueles que procuram Deus para obter bênçãos materiais, como riqueza ou sucesso. Embora ainda ligados a desejos mundanos, esses devotos mantêm uma relação mais constante com o divino.
4. Jñāni (o sábio ou devoto puro): O nível mais elevado, onde o devoto se conecta com Deus por amor puro e desinteressado, sem buscar recompensas. O jñāni vê Deus como o propósito supremo da vida, entregando-se completamente por meio de devoção e sabedoria. Krishna considera esses devotos os mais queridos.
Esses quatro níveis mostram que a relação com o divino pode começar em diferentes pontos desde a busca por alívio até o amor incondicional e evoluir à medida que o devoto cresce espiritualmente. A amizade de Krishna com Arjuna reflete especialmente o nível do jñāni, onde a confiança e o amor mútuo culminam em uma entrega total.
Resolução do Conflito Interno
Krishna oferece a Arjuna uma estrutura para resolver seu conflito interno, que pode ser aplicada à psique humana em geral.
Autoconhecimento (Jnana Yoga): Krishna explica que a alma é eterna e imutável, distinta do corpo e da mente. Compreender isso ajuda Arjuna a transcender o apego e o medo, que são raízes de seu conflito interno.
Cumprimento do dever (Karma Yoga): Krishna aconselha Arjuna a agir sem apego aos resultados, focando no dever (dharma) com desapego. Isso alivia a pressão psicológica de Arjuna, permitindo que ele aja com clareza.
Devoção (Bhakti Yoga): A entrega a Krishna, como amigo e guia divino, dá a Arjuna a força emocional para enfrentar suas dúvidas. A confiança na orientação divina ajuda a acalmar a turbulência interna.
Controle da mente (Raja Yoga): Krishna enfatiza a importância de disciplinar a mente para superar desejos e distrações, promovendo equilíbrio psicológico.
Relevância Universal
A relação de amizade entre Krishna e Arjuna simboliza a possibilidade de uma conexão direta entre o ser humano e o divino, sem intermediários. Os quatro níveis de relação Árta, Jijñāsu, Arthārthī e Jñāni mostram que cada pessoa pode se aproximar de Deus de acordo com sua maturidade espiritual, evoluindo de uma busca motivada por necessidades materiais até um amor desinteressado. Essa relação oferece um modelo para lidar com conflitos internos.
Assim como Krishna guia Arjuna, a presença de uma força superior (seja Deus, um guia espiritual ou a própria consciência) pode ajudar a superar dúvidas e medos e servir de apoio em momentos de crise.
A Gita ensina que o conflito interno não é resolvido apenas por ação ou reflexão, mas por uma integração de ambos, guiada por sabedoria e devoção, um equilíbrio entre ação e introspecção.
A amizade entre Deus e o homem sugere que o divino está sempre presente, mesmo nas lutas mais profundas da psique, oferecendo orientação, amor e confiança na jornada espiritual.
A Bhagavad Gita usa a relação de amizade entre Krishna e Arjuna para ilustrar como o divino pode ajudar o ser humano a enfrentar conflitos internos. Os quatro níveis de relação Árta, Jijñāsu, Arthārthī e Jñāni mostram os diferentes caminhos pelos quais o homem se conecta com Deus, desde a busca por alívio até a devoção pura. Krishna, como amigo e guia, oferece a Arjuna uma combinação de sabedoria, apoio emocional e orientação espiritual, permitindo que ele supere suas dúvidas e aja com clareza. Essa dinâmica reflete a luta universal da psique humana para encontrar propósito, equilíbrio e paz, mostrando que a conexão com o divino, seja por meio de amizade, devoção ou autoconhecimento, é uma ferramenta poderosa para transcender conflitos internos e viver em harmonia com o próprio dharma.



