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Altas Habilidades/Superdotação: Um Relato Pessoal e a Importância da Inclusão




Compartilho meu relato pessoal com o objetivo de promover reflexão sobre as altas habilidades/superdotação (AH/SD), seus critérios de diagnóstico e a relevância de políticas de inclusão em ambientes educacionais, acadêmicos e corporativos.


Em 2019, durante minha pós-graduação em neuropsicologia, decidi me submeter a uma avaliação neuropsicológica realizada por colegas de curso. O resultado foi transformador, trazendo luz a questões que marcaram minha trajetória escolar, acadêmica e pessoal.


Por toda a minha vida, enfrentei uma constante insatisfação e tédio diante de tarefas que considerava simples. Quando algo era "fácil demais", eu perdia a motivação e o interesse, o que frequentemente me levou a ser rotulada como preguiçosa ou desinteressada. Na escola, eu não tinha paciência para acompanhar aulas que pareciam redundantes, preferindo estudar sozinha por meio de livros didáticos. Apesar de faltar a muitas aulas, eu sempre alcançava notas máximas, o que gerava um misto de orgulho e estranheza.


Outro aspecto marcante era minha dificuldade em compreender as barreiras enfrentadas por colegas diante de conteúdos que, para mim, pareciam óbvios. Isso me levou a questionar se eu era soberba ou prepotente, quando na verdade, eu também sofria com minha condição, sentindo-me desajustada e incompreendida.


Na universidade, a situação se intensificou. Conciliando trabalho diurno, três filhos pequenos e a graduação noturna, eu ainda achava o ritmo acadêmico "raso". Cheguei a cursar mais disciplinas do que o recomendado, complementando com cursos extracurriculares, em busca de desafios que suprissem minha necessidade intelectual. Concluí uma faculdade de cinco anos em menos de quatro, mesmo enfrentando desafios como levar meus filhos às aulas para não perder conteúdo. Ainda assim, sentia um vazio, como se o sistema não estivesse preparado para atender às minhas particularidades.


A avaliação neuropsicológica trouxe clareza ao meu perfil cognitivo. Os resultados indicaram desempenho significativamente acima da média, caracterizando o perfil de altas habilidades/superdotação (AH/SD). Meus escores situaram-se no percentil 98 em testes padronizados, com habilidades excepcionais nas seguintes áreas:


  • Raciocínio lógico-matemático: Capacidade avançada para resolver problemas complexos e identificar padrões.

  • Processamento verbal: Alta competência em compreensão, expressão e manipulação de informações verbais.

  • Criatividade: Habilidade de gerar soluções inovadoras e pensar fora da caixa.

  • Memória de trabalho: Capacidade de armazenar e processar informações simultaneamente de forma eficiente.


A avaliação recomendou minha inclusão em programas de enriquecimento curricular e atividades que promovam desafios intelectuais, além de acompanhamento acadêmico especializado. Também destacou a importância de suporte socioemocional, considerando traços comuns em indivíduos com AH/SD, como:


  • Sensibilidade emocional: Intensidade nas emoções, que pode levar a reações desproporcionais em situações de estresse.

  • Perfeccionismo: Tendência a estabelecer padrões elevados, podendo gerar autocrítica excessiva.

  • Intensidade emocional: Vivência profunda de sentimentos, que pode impactar relacionamentos interpessoais.


O relatório enfatizou a necessidade de suporte familiar e acadêmico para o pleno desenvolvimento de meu potencial, além de acompanhamento contínuo com profissionais especializados para orientações individualizadas.


O diagnóstico de AH/SD é um processo complexo que exige avaliação multidimensional, geralmente conduzida por psicólogos e neuropsicólogos.

Os principais critérios incluem:


  1. Desempenho Cognitivo Superior: Escores em testes de inteligência (como WISC-V ou WAIS-IV) que se situam nos percentis mais altos (geralmente acima de 98), indicando habilidades excepcionais em áreas como raciocínio, memória, linguagem ou criatividade.

  2. Habilidades Específicas: Demonstração de talentos notáveis em domínios específicos, como matemática, artes, música, escrita ou liderança.

  3. Criatividade e Pensamento Divergente: Capacidade de gerar ideias originais e soluções inovadoras, frequentemente avaliada por testes.

  4. Motivação Intrínseca: Interesse intenso e persistente em áreas de talento, muitas vezes acompanhado de autodidatismo.

  5. Características Socioemocionais: Traços como perfeccionismo, sensibilidade, intensidade emocional ou dificuldade em se adaptar a ambientes pouco desafiadores.

  6. Observação Contextual: Relatos de professores, familiares ou colegas que identifiquem comportamentos consistentes com AH/SD, como aprendizado rápido, curiosidade intensa ou desempenho excepcional.


O diagnóstico deve considerar a interação entre fatores cognitivos, emocionais e ambientais, evitando estereótipos ou preconceitos que associem AH/SD apenas a "gênios" ou a desempenho acadêmico impecável.


A identificação de indivíduos com AH/SD é apenas o primeiro passo. Sem políticas de inclusão adequadas, essas pessoas podem enfrentar desmotivação, isolamento ou subaproveitamento de seu potencial. A inclusão de pessoas com altas habilidades é essencial em três esferas principais: educacional, acadêmica e corporativa.


No Brasil, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) reconhece estudantes com AH/SD como parte do público-alvo da educação especial. No entanto, a implementação de medidas específicas ainda é limitada. Estratégias eficazes incluem:


  • Enriquecimento curricular: Oferecer conteúdos avançados ou projetos interdisciplinares que desafiem os alunos.

  • Aceleração acadêmica: Permitir que avancem mais rapidamente em determinadas disciplinas ou séries.

  • Atendimento educacional especializado (AEE): Proporcionar acompanhamento individualizado para desenvolver habilidades cognitivas e socioemocionais.

  • Formação de professores: Capacitar educadores para identificar e atender às necessidades de alunos com AH/SD, evitando rótulos como "preguiçosos" ou "desinteressados".


Sem essas medidas, estudantes com AH/SD podem desenvolver problemas como tédio, baixa autoestima ou até mesmo transtornos de ansiedade, como ocorreu em parte da minha trajetória escolar.


Nas universidades, a inclusão de estudantes com AH/SD é ainda mais incipiente. Muitas instituições não possuem programas específicos para atender a esses alunos, que frequentemente se sentem desmotivados por currículos padronizados. Algumas estratégias incluem:


  • Flexibilização curricular: Permitir a escolha de disciplinas avançadas ou a participação em projetos de pesquisa desde os primeiros períodos.

  • Mentoria acadêmica: Conectar estudantes a professores ou pesquisadores que possam orientá-los em projetos desafiadores.

  • Suporte socioemocional: Oferecer serviços de aconselhamento psicológico para lidar com questões como perfeccionismo ou dificuldade de integração social.


No meu caso, a ausência de suporte acadêmico especializado me levou a buscar desafios por conta própria, o que, embora bem-sucedido, foi emocionalmente desgastante.


No mercado de trabalho, indivíduos com AH/SD podem ser ativos valiosos, trazendo criatividade, inovação e capacidade de resolver problemas complexos. No entanto, sem políticas de inclusão, esses talentos podem ser subutilizados ou mal compreendidos. Algumas questões a considerar:


  • Como identificamos esses profissionais? Avaliações de desempenho tradicionais podem não captar o potencial de pessoas com AH/SD, que muitas vezes se destacam em projetos inovadores, mas podem se desmotivar com tarefas rotineiras.

  • Como criamos ambientes desafiadores? Empresas devem oferecer oportunidades para que esses profissionais assumam projetos complexos, liderem iniciativas inovadoras ou participem de programas de desenvolvimento.

  • Como promovemos o bem-estar? O suporte socioemocional é crucial, considerando que muitos enfrentam desafios como perfeccionismo ou dificuldade em trabalhar em equipe devido a diferenças no ritmo de pensamento.


A ausência de políticas corporativas específicas pode levar a altas taxas de rotatividade ou à insatisfação de profissionais com AH/SD, que frequentemente buscam ambientes mais alinhados com suas necessidades.


Minha jornada com altas habilidades/superdotação foi marcada por desafios e conquistas. A avaliação neuropsicológica trouxe não apenas um diagnóstico, mas também um novo entendimento sobre mim mesma, permitindo-me abraçar minhas particularidades e buscar ambientes que valorizem meu potencial. No entanto, nem todos têm acesso a esse tipo de suporte, o que reforça a urgência de políticas de inclusão robustas.


Nos ambientes educacionais, acadêmicos e corporativos, é fundamental reconhecer que pessoas com AH/SD não são apenas "talentos a serem explorados", mas indivíduos com necessidades específicas, tanto cognitivas quanto emocionais. Investir em sua inclusão não é apenas uma questão de justiça social, mas também uma estratégia para promover inovação, criatividade e desenvolvimento humano.


Fica a pergunta: Como podemos, em nossas escolas, universidades e empresas, criar espaços onde pessoas com altas habilidades sejam não apenas aceitas, mas verdadeiramente valorizadas?

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