Um versus Muitos: Contrastes na Compreensão da Divindade
- Micael Faccio
- 4 de mai.
- 5 min de leitura
O politeísmo é mesmo “primitivo”, ou será que o monoteísmo deve muito a ele?
É comum ouvir que o politeísmo, com seus múltiplos deuses e cultos a imagens, é uma crença “inferior” ou “primitiva” em comparação ao monoteísmo, que adora um único Deus. Essa visão, moldada por religiões como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo, simplifica o politeísmo e ignora sua profundidade espiritual e psicológica.
Além disso, desconsidera que o monoteísmo tem raízes no politeísmo, com influências significativas, como as do zoroastrismo, que é frequentemente apontado como um dos primeiros sistemas a enfatizar uma divindade suprema.
O monoteísmo também adaptou práticas e datas comemorativas politeístas por razões históricas e sociais. Aqui falaremos como o politeísmo enxerga o divino, como ele se conecta a uma realidade suprema e como o monoteísmo, incluindo a influência de Zoroastro, depende de sua herança.
O que o politeísmo realmente significa?
Diferente do senso comum, o politeísmo não é apenas “adorar muitos deuses” ou venerar estátuas como divindades literais. As imagens, como as murti no Hinduísmo, são símbolos, não ídolos. Elas funcionam como portais para conectar as pessoas a aspectos espirituais ou forças cósmicas. Por exemplo, no ritual hindu de puja para Ganesha, a estátua não é adorada, mas usada para invocar a energia de superação de obstáculos que Ganesha representa.
Os deuses politeístas, como Indra (coragem), Sarasvati (sabedoria) ou Agni (fogo transformador) no Hinduísmo, simbolizam qualidades internas da mente humana. Seus rituais são práticas meditativas que promovem autoconhecimento e elevação espiritual. Assim, o politeísmo é tanto sobre o “interno” (a psique) quanto sobre o “externo” (o cosmos), expressando o divino de forma pluralista sem negar sua unidade.
Uma divindade suprema no politeísmo? Sim, ela existe!
Um grande equívoco é achar que religiões politeístas não acreditam em um “Deus” transcendente. Na verdade, todas reconhecem uma realidade suprema acima dos deuses individuais.
Veja alguns exemplos:
• Hinduísmo: Nos Vedas, os devas (deuses) são manifestações de uma única verdade, chamada Brahman nos Upanishads. O Rigveda (1.164.46) diz: “A verdade é uma, mas os sábios a chamam por muitos nomes.” Deuses como Vishnu ou Shiva são formas desse Brahman.
• Mitologia Grega: Apesar do panteão com Zeus e Atena, havia o conceito de Moira (destino) ou O Uno dos filósofos, como Platão, que transcendia os deuses. • Egito Antigo: Deuses como Rá e Ísis eram expressões de uma força maior, como Amon-Rá ou Ma’at (ordem cósmica).
• Tradições Nórdicas: Odin e Thor eram subordinados ao Wyrd, uma força cósmica que governava até os deuses.
• Religiões Africanas: Na tradição iorubá, Olodumare é a divindade suprema, com orixás como Xangô sendo suas manifestações.
• Religiões Indígenas: Entre os povos andinos, Viracocha é o criador universal, com outros deuses como suas expressões.
Os deuses politeístas são como facetas de um diamante: cada um reflete um aspecto do divino, mas todos estão ligados a uma unidade maior. Essa multiplicidade celebra a diversidade da experiência humana sem negar a infinitude do divino.
O monoteísmo vem do politeísmo – e o papel de Zoroastro
O monoteísmo não surgiu isoladamente; ele tem raízes profundas no politeísmo, do qual herdou conceitos, práticas e datas comemorativas adaptadas por razões sociais e históricas. O zoroastrismo, fundado por Zoroastro (ou Zaratustra) por volta dos séculos VII a VI a.C. na Pérsia, é frequentemente considerado um marco na evolução do monoteísmo. Ele enfatizou a adoração de Ahura Mazda como a divindade suprema e criadora, com outras entidades, como os Amesha Spentas, sendo aspectos subordinados de sua vontade. Embora o zoroastrismo tenha elementos dualistas (como a oposição entre Ahura Mazda e Angra Mainyu), sua ênfase em uma divindade suprema influenciou o desenvolvimento do monoteísmo em outras tradições, como o Judaísmo, especialmente durante o exílio babilônico (século VI a.C.), quando os judeus tiveram contato com ideias persas.
No entanto, o monoteísmo não começou exclusivamente com Zoroastro. Ele evoluiu gradualmente de sistemas politeístas e henoteístas (que priorizam um deus principal sem negar outros). Exemplos incluem:
• Judaísmo: Antes do monoteísmo estrito, os hebreus praticavam o henoteísmo, adorando Yahweh, mas reconhecendo outros deuses. Textos como Êxodo 20:3 (“Não terás outros deuses diante de mim”) sugerem um passado politeísta. A consolidação do monoteísmo ocorreu entre os séculos XIII e VI a.C., influenciada por fatores como a centralização política, o exílio babilônico e, possivelmente, o zoroastrismo.
• Cristianismo: O Cristianismo absorveu elementos politeístas do Império Romano. O Natal, em 25 de dezembro, coincide com o festival pagão de Sol Invictus e as Saturnálias, adaptados no século IV d.C. para facilitar a conversão de pagãos. A Páscoa tem paralelos com festivais de primavera, como os dedicados à deusa Eostre.
• Islamismo: O Islã surgiu em um contexto árabe politeísta, onde Alá era uma divindade suprema entre outros deuses. A Kaaba, em Meca, era um santuário politeísta antes de ser rededicado ao culto monoteísta.
Essas adaptações foram estratégicas, tornando o monoteísmo mais acessível às populações politeístas e promovendo unidade social e política, como na unificação do Império Romano sob o Cristianismo. Assim, o monoteísmo, influenciado por sistemas como o zoroastrismo, não apenas deriva do politeísmo, mas também carrega suas práticas e celebrações.
Por que o preconceito contra o politeísmo?
A visão de que o politeísmo é “primitivo” vem de uma definição monoteísta rígida de “Deus” como uma entidade única e exclusiva. Isso leva a mal-entendidos, como achar que politeístas adoram estátuas ou rejeitam uma verdade maior. Mas o culto às imagens no politeísmo é semelhante aos ícones no Cristianismo Ortodoxo: são ferramentas para focar a mente, não objetos de adoração literal.
Os deuses politeístas representam forças da psique – coragem, sabedoria, transformação – que ajudam as pessoas a explorar conflitos internos e buscar equilíbrio. Negar essa profundidade é ignorar a sofisticação psicológica e espiritual dessas tradições. O politeísmo não nega a unidade divina, mas a expressa de forma pluralista, reconhecendo a infinitude do divino.
Politeísmo e monoteísmo: mais próximos do que pensamos
Tanto o politeísmo quanto o monoteísmo buscam compreender o divino e o lugar da humanidade no cosmos. O monoteísmo enfatiza a unidade, enquanto o politeísmo celebra a diversidade, mas ambos reconhecem uma realidade transcendente. O monoteísmo, influenciado por sistemas como o zoroastrismo, deriva do politeísmo e adapta suas práticas e datas para contextos históricos.
Julgar o politeísmo como inferior reflete uma falta de diálogo inter-religioso e a imposição de categorias monoteístas sobre sistemas diferentes. As tradições politeístas, com seus panteões vibrantes e rituais simbólicos, mostram que é possível honrar a multiplicidade sem perder de vista a unidade. Elas nos ensinam que o divino é infinito e pode ser vivido de muitas formas, refletindo a riqueza da experiência humana.
O politeísmo não é “primitivo” nem “superficial”. Ele oferece uma visão profunda do divino, com deuses que simbolizam forças internas e cósmicas, todos conectados a uma realidade suprema. O monoteísmo, com influências de sistemas como o zoroastrismo, deriva do politeísmo e carrega suas práticas e datas adaptadas por razões históricas e sociais. Reconhecer isso promove uma visão mais inclusiva e respeitosa da espiritualidade humana.





